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Notas sobre o filme: "Amor nos tempos do cólera"

A partir do filme podemos pensar algumas questões que constituem a dinâmica psíquica inconsciente.

Neste caso, observaremos o processo de idealização e de defesa. Os trilhamentos destes processos produzindo formas subjetivas.

Além disso, podemos articular algumas concepções e atitudes expressas no filme, com uma abordagem Zen Budista.

Neste caso, observaremos a instauração do desequilíbrio a partir da não aceitação e da opressão da verdade.

Nosso objetivo é o de aproximar estas duas vertentes de pensamento e identificar a partir desta articulação teórica elementos causadores e formadores de mal estar e elementos disparadores de bem estar.

Uma questão que aparece como principal é a figura do amor como algo que une de forma absoluta ou separa radicalmente os sujeitos uns dos outros e de si mesmos.

A visão aparente seria a de uma concepção de amor que, uma vez presente está acima de qualquer tipo de elaboração.

É como se o sujeito fosse abatido, acometido, atravessado por um sentimento, o qual ele nada pudesse fazer a não ser torná-lo seu refém.

É curioso que a palavra “cólera” também tem este significado. Um estado de fúria que uma vez instalado no sujeito, ele estivesse totalmente sem controle.

A cólera, doença fatal ou quase fatal, na época era pano de fundo de uma história de “amor” ou de fúria?!

Chama a atenção também que o salvador da cólera, o médico que havia estudado em Paris, foi também o salvador da “cólera” em Ferminia.

Ou seja, teve a função de tirá-la de um estado de pathos, de paixão doentia, algo que podia ser confundido com a cólera. Ele a colocou num mundo codificado, estável, do casamento. Ele diz categoricamente; “não é cólera, é infecção intestinal”. E podemos entender: “não é paixão, é algo doentio e tratável, curável”.

Veremos mais adiante que este próprio médico temia a cólera em si e refugiou-se num casamento seguro. Sua mãe era alguém extremamente autoritária e racional.

Na fala do próprio médico, a felicidade e o amor não são mais importantes que a estabilidade de um casamento.

Fermina chega a questionar: “o amor é mais difícil?”. Mas num momento onde ela própria já se via enfraquecida para amar.

Outros elementos já tinham tomado a cena. A “concretude” da estabilidade conjugal era um forte combatedor da fragilidade do amor.

Mas acompanhemos o que acontece com Florentino Arizza. Florentino é um rapaz que vive com a mãe. O pai abandonou a família. A mãe é alguém muito próxima a ele. Uma mãe confidente, muito intensa afetivamente. Sua afetividade transborda. Foi abandonada pelo marido e excede com o filho este afeto. Isto cobrará um preço a Florentino, em sua forma de “amar, ou encolerizar-se”.

Ele diz para ela, num determinado momento: “o que eu tive foi amor e não cólera, você se enganou”. E isso parece dizer: “a paixão que senti não era doentia, “patologizável” era puro afeto e vontade de existir, para além da relação com a mãe que carregava algo de melancólico afetivamente, uma enunciação de perda inevitável, tal qual a mãe carregava em si”.

Florentino ao ver Fermina é invadido por um sentimento muito forte. Para ele é como se neste momento, a partir do que começou a sentir, sua existência ganhasse todo o sentido.

Vemos no Zen e na psicanálise o quanto este sentimento de si é importante para os sujeitos, uma percepção e uma apropriação de si, um sentimento de pertencimento. Algo que faça o sujeito reconectar-se com o mundo, com a vida. Algo que o coloque diante de si e de tudo que há a sua volta.

Este sentimento não necessariamente é arrebatador, intenso no sentido de pathos. Este sentimento pode ser muito sereno, muito apaziguador, aquilo que na psicanálise atende pelo nome de “sentimento oceânico”; e no zen: “estado de nirvana”. É para isso que trabalhamos firmemente no treinamento Zen e Analítico. Para que me sinta vivo e com um norte.

Não será necessário o desnorteio para me sentir vivo se afirmo a vida e o desejo no meu existir diário, dentro da simplicidade e da regularidade da vida cotidiana.

Mas muitas vezes, esta é a única forma de encontro consigo e com o outro.

O encontro de Florentino com algo de Fermina que provocou tanta mobilização interna nos faz pensar. Parece que os dois estavam ávidos por encontrar algo que fizesse sentido em suas vidas “desequilibradas” (melancolicamente desequilibradas).

O encontro do olhar de ambos e os gestos parece ter feito um amálgama pontual e colocou-os em suspenso do mundo à volta.

Estas ligações, conexões e trocas em níveis profundos, são estados almejados pelos seres humanos. É como se de fato, as pessoas procurassem inconscientemente esta ligação primordial com o outro, com o mundo, com a vida.

O sentimento de desgarrado, desamparado, fragmentado, é muito recorrente nos seres humanos. Uma lacuna que começa a existir já bem cedo por um descompasso temporal com o outro.

Isto que irrompe como um sentimento muito forte precisa de sustentação, de materialidade, de consistência, de densidade, para continuar existindo psiquicamente e para que possa ser desenvolvido, expandido e vivido saudavelmente.

Neste caso, a mesma força que irrompeu a cena, precisou ser abortada.

Dali em diante, o processo de Florentino, para dar conta disso, foi diferente de Fermina. Mas ambos conviveram fortemente com as conseqüências deste (des)encontro.

Florentino foi impelido a “preservar” aquela cena, aquele afeto, aquele objeto amoroso. Congelou Fermina e foi congelado ao mesmo tempo, cristalizou e foi cristalizado, na imagem daquela cena e assim a perseguiu como um ideal a ser alcançado. Um ideal de eu. Ele só podia se vê inteiro se junto daquela cena, daquele objeto amoroso.

A única coisa que fazia sentido para ele era estar próximo daquele sentimento de novo. E para isso precisava estar com Fermina.

Este trauma só pode ser pensado - enquanto constituição - por sua força de irrupção e a sua igual força de impossibilidade de representação (vivência da situação).

Ele seguiu sua vida de forma obstinada, obcecada, cego, por este ideal. É interessante que a única coisa que o suspendia temporariamente deste “desejo” (comando superegóico) era o desejo “carnal” (um imperativo com a mesma força de combate inconsciente).

O que nos faz pensar que o amor por Fermina estava no campo de algo sublime. Algo para além da materialidade corpórea.

É curiosa a cisão deste amor. Ele vivia a cisão do amor, mas não se importava com isso já que estava “certo” (iludido) que um dia isto poderia ser unificado. E, na verdade, os dois lados cindidos afirmavam um ao outro, assim como, sustentavam, um a existência do outro. Por isso, a compulsão ao sexo se tornou uma prática tão importante.

De outro lado, Fermina precisou estancar este sentimento de uma maneira muito brusca. O seu pai teve a função de produzir nela a crença de que tudo não passava de uma névoa, uma ilusão. A cena da vela apagando em sua cara é muito marcante, espalhando junto com a fumaça toda e qualquer possibilidade daquele sentimento fazer sentido.

A força do pai era muito intensa, assim como a força do médico que assegura o estado de controle das paixões, também foi muito significativa. Para combater aquela paixão só muita repressão. A assepsia do médico e a névoa do pai se encarregaram disto. Há uma evidente batalha travada no campo da “pulsão de vida” e “pulsão de morte”. A afirmativa da paixão e a aniquilação da mesma com forças antagônicas muito poderosas.

É interessante que o médico foi buscar encontrar em alguém aparentemente muito diferente dele um apaziguamento para sua inquietude. A doutora negra de teologia. E isto é um exemplo de como não dá para negar a realidade. Ou seja, numa linguagem Zen, é preciso seguir a sua natureza e aceitar a si e tudo que está a sua volta. De outra forma, o trabalho de renunciar a si e ao outro é produtor de desequilíbrio.

Mais uma vez a repressão falou mais alto, e, ele não conseguiu sustentar este “amor”. Ao contrário disso, enfraqueceu-se, adoeceu, fragilizou-se em nome da “estabilidade existencial”. Estabilidade esta que lhe custou o sono e produziu uma angústia diária.

Cabe perguntar aqui que ideal é este que coloca o sujeito de frente para um abismo existencial? A elaboração de si e a coragem para aceitação do que sou traz a possibilidade deste ideal ser esfumaçado e ser visto como algo além do alcançável.

Para Florentino, apresentar-se ao seu destino pontualmente (quando o médico falece) era algo natural e correto. Era o ideal que o tinha mantido vivo. Era o que sabia desde sempre que devia fazer.

Para Fermina, não estava claro o que havia acontecido em sua vida. Afinal o que era o amor? Qual a consistência subjetiva desta experiência? O que tinha experienciado era um grande arrebatamento, seguido de uma necessidade categórica de abortamento, e o que ficou foi a lembrança de algo que não tinha sustentação real. Era uma névoa, uma ilusão. Teria se confundido, teria percebido equivocadamente a si mesma, teria delirado, alucinado? A forma como ela expressa isso para Florentino, reflete que para ela isso tinha uma marca de ilusão.

O curioso é que a concretude da realidade não a trazia uma experiência subjetiva mais clara, mais reconfortante. Ao contrário parecia que a oposição entre um campo e outro a afastava da possibilidade de ter uma experiência real, verdadeira, própria.

Só quando o marido morre e com toda uma vida experimentada duramente, é que Fermina começa a se humanizar de novo. Parece que neste momento ela está livre para ser o que quiser. Pode usufruir de sua vida.

A paixão, a cólera, não tem mais campo para expressão. No terreno dos afetos suaves pode se reconhecer, e ser ainda, alguém importante para si e para outro.

Florentino segue sua vida impassível. É como se tivesse aprendido muito fortemente a lidar com a dor da perda, vislumbrando um único momento que pudesse repará-la totalmente. É como tivesse adquirido a certeza de que precisa esperar para ser feliz e a espera deveria ser preenchida por prazeres mundanos. Muitos, pois a quantidade aqui era a contra força para a qualidade de mais adiante.

Neste sentido é verdadeira a percepção de Fermina: “Florentino, não é uma pessoa, é uma sombra, um fantasma”. Sim, ele perambulava como um fantasma. Alguém que vive a sombra de um objeto perdido: melancólico.

E parece que é isso mesmo. A cena real de Fermina e Florentino precisou ser substituída por uma cena fantasmática. Para ambos, a impossibilidade da vivência fez produzir o fantasma de que só em outra temporalidade, só em outro campo de expressão, em um terreno não ameaçador - a velhice – seria possível algo.

É triste ver o quanto se desperdiça de uma vida. E é triste ver o quanto ainda hoje estes mecanismos repressivos se fazem valer por outras estratégias mais sutis e quase invisíveis de sustentabilidade.

Ao vermos hoje as pessoas recorrendo muito facilmente a vários mecanismos de idealização e sublimação por um medo absurdo de se depararem consigo mesmas e o outro e todo o arsenal de risco que este encontro envolve.

O mundo veloz de hoje diz o tempo todo: não precisa passar por uma depressão, não precisa ter o desconforto de passar por qualquer embaraço. É como se houvesse próteses para tudo. Não está feliz no casamento, apareceu algum desconforto, vá a esquina e se iluda com alguém “disponível”. Um parque de diversões afetivo que só protela o encontro consigo mesmo e as “razões” de sua dor.

A única coisa que parece está faltando às pessoas é justamente se darem o tempo e espaço para se verem e se conhecerem para decidirem o que querem para suas vidas.

Parar e compreender que é preciso: suavidade, leveza, delicadeza, verdade, e muito afeto para existirmos em nós e nos outros.